História A Arte da CapoeiraNAVEGAR É PRECISO...
- canal capoeira entretenimento
- 5 de jun. de 2020
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História
A Arte da Capoeira NAVEGAR É PRECISO...
A expansão marítima teve como significado a escravização dos africanos. Desde meados do século XV os negros foram submetidos ao trabalho nas plantações do sul de Portugal (Algarve), nas minas da Espanha e serviços domésticos em geral na França e Inglaterra.No decorrer do tempo e como resultado da valorização do tráfico negreiro - uma atividade comercial altamente lucrativa - as formas de exploração sobre o continente negro foram se sofisticando. Chefes de grupos tribais eram corrompidos por mercadores europeus em troca de tecidos, jóias, metais preciosos (como ouro e cobre), armas, tabaco, algodão, cachaça e mesmo búzios - considerados objetos sagrados, e até funcionando como moeda.As incursões com o objetivo de apresar nativos foram se tornando raras, já que os sobas, chefes locais, se encarregavam da apreensão da mercadoria, inclusive organizando ataques a outras tribos. O comércio começava a ser feito harmonicamente... Ao serem embarcados nos portos da África os negros eram batizados pelos padres encarregados de convertê-los ao cristianismo e marcados com ferro quente. A marca servia também para distinguir os batizados daqueles que ainda não haviam recebido os sacramentos... Viajando nos porões dos navios negreiros, chamados tumbeiros, amontoados como coisas, na mais completa promiscuidade, inúmeros africanos morriam em razão dos maus tratos e doenças, dos ferimentos diversos e ainda sucumbindo ante a condição desumana a que eram submetidos. A dor imensa causada pela perda da liberdade, o afastamento de tudo que lhes era caro, provocava o banzo - sentimento de revolta, dor, pesar e nostalgia. Depois, vinha a morte. Rugendas fez o registro: “Tenha-se a imagem cruel do negro em face da separação de tudo quanto lhe era caro e sejam recordados os efeitos do mais profundo abatimento ou mais terrível desespero de espírito, unido às privações do corpo e às provações da viagem. Então não se estranhará a baixa mortal de tantos, no alto-mar.” Na chegada às terras brasileiras os negros eram leiloados. E as melhores peças de imediato adquiridas por capatazes ou pelos próprios senhores, que não raro se dedicavam à escolha cuidadosa dos cativos.A vida rural predominava com características de exploração que perduram até os dias atuais. Aliás, têm um forte sabor de atualidade as observações feitas por frei Vicente do Salvador a respeito dos hábitos extrativistas cultivados pelos colonizadores europeus: “Não só os que de lá vieram, mas também os que nasceram cá, não usam da terra como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída.” Os africanos trabalhavam nas lavouras e tarefas domésticas nas casas dos senhores. Viviam nas senzalas, quase sempre formadas de muitas construções apertadas umas às outras. Na senzala e na casa grande, onde moravam os donos dos engenhos, o proprietário era senhor absoluto. Os negros eram submetidos aos trabalhos forçados e cabia aos feitores estabelecer a disciplina e garantir a produtividade dos escravos.Nos séculos XVI e XVII o Rio de Janeiro, Salvador e Recife foram os mais importantes centros receptores de negros sudaneses - como os iorubás, geges, haussas e minas; de bantos - como os angolas e os cabindas; e de malês, de idioma árabe e islamizados.Um alto preço foi pago em razão da cruel valorização mercantilista do homem negro, absurda fonte da riqueza dos que traficavam e dos que o utilizavam, como afirma Herbert Aptheker: “Em quatro séculos, do XV ao XIX, a África perdeu, entre escravizados e mortos, 65 a 75 milhões de pessoas e estas constituem uma parte selecionada da população, uma vez que ninguém, intencionalmente, escraviza os velhos, os aleijados, os doentes”.Afonso Taunay estima que teriam entrado no Brasil, nos séculos XVI, XVII e XVIII, respectivamente 100.000, 600.000 e 1.300.000 negros escravizados. Arrancados à força da sua terra, uma vida de sacrifícios os aguardava: trabalho árduo de sol a sol nas grandes fazendas-engenhos de açúcar, por exemplo. Tão grande era o esforço que um africano sobrevivia em média de sete a dez anos. Chegar ao Brasil já era uma demonstração de incrível resistência: cerca de 40% dos negros malungos, denominação para os aprisionados e transportados, pereciam durante a viajem.Charles Ribeyrolles discorreu longamente acerca dos trabalhos desenvolvidos pelos negros no Brasil: “Quem cavou a terra, quem abriu as galerias, desviou as correntes, lavou as areias, achou o ouro e os diamantes? Os negros. As tribos dos índios foram escorraçadas pelos colonos proprietários, de floresta em floresta ou de morro em morro. Mas quem arroteou os terrenos e cultivou o solo, ou quem semeou, plantou e colheu? Os negros. Quem aprontou os trabalhos do campo, tão rudes e penosos, em plena zona tórrida, e quem se encontrava a mourejar nas usinas, moinhos, estaleiros e estradas? Os negros.” Já foi dito que os escravos faziam de tudo. Eram as mãos e pés do senhor de engenho. As riquezas produzidas no Brasil dependiam desses trabalhadores. André João Antonil, jesuíta que analisou nossa vida econômica e social em seu Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas, escrito no início do século XVIII, noticia a necessidade da importação de trabalhadores escravizados por serem indispensáveis. Afirmou Antonil: “(...) É necessário comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas.” As tarefas mais especializadas (de caldeireiro, carpinteiro, tacheiro e marinheiro) eram realizadas pelos negros que se adaptavam mais rapidamente à nova situação. Serviços brutais eram realizados por homens e mulheres que também pegavam na foice e na enxada, nos canaviais, nas oficinas ou na casa grande; e um número pequeno de trabalhadores livres, assalariados, desempenhando funções de vigilância ou que exigiam conhecimento técnico - como no caso do preparo do açúcar - aumentavam a enorme multidão de explorados.Formadas de roças e pomares, as grandes fazendas alcançavam praticamente a auto-suficiência. Era comum os escravos terem um dia na semana para plantarem para si; o básico em sua alimentação era a mandioca. Havia ainda nos engenhos outros homens livres e expropriados, que não foram integrados à produção mercantil. Como trabalhavam nas roças de subsistência eram chamados roceiros. Como pagamento do seu trabalho os escravos recebiam castigos: "pau, pano e pão". E reagiam. Em troca dos tormentos, assassinavam feitores, suicidavam-se, evitavam a reprodução, eliminavam capitães-do-mato e mesmo proprietários. A resistência se manifestava nos seus cultos, onde a dominação era simbolicamente contestada. O candomblé foi - e ainda é - um ritual de liberdade, protesto, reação à crueldade e opressão do Deus dos brancos. Dançar, batucar, rezar e cantar eram modos encontrados para alívio da asfixia da escravidão. A dominação era contestada também ao nível do real - na fuga das fazendas e na formação de quilombos, aldeias de negros foragidos, onde tentavam reconstituir em matas brasileiras o modo de vida que levavam na África.Em seu esforço para estabelecer a verdade quanto ao autêntico trabalho de construção do Brasil, informa Ribeyrolles: “Nas chácaras, nas fazendas, nas moradas urbanas, nas ruas e nas praças das grandes cidades, sobre quem recaíam os trabalhos servis e domésticos? Nas fábricas e nas oficinas, quem girava as molas, acendia os fornos, esfregava, suava, carregava e se incumbia, numa só palavra, dos mais baixos misteres? Os negros, os negros, quase unicamente os negros. O trabalho africano, em todas as coisas e todas as tarefas, foi o instrumento, a mão, a roda e a ferramenta, intervindo em tudo como agente de produção, dos transportes e das mudanças, vivendo para todos os serviços e todos os encargos.” Os castigos corporais eram uma constante. Punições inimagináveis aplicadas sem compaixão. O trabalho diário constituía jornada estafante e muitos senhores estabeleciam que os negros deviam prover o próprio sustento, através do cultivo, fora das horas de trabalho - no que seria o período de descanso - das lavouras para a subsistência. Com isto, não havia repouso suficiente para a reposição de forças. Tudo acontecia sob os olhos atentos dos prepostos dos senhores, vigilantes a qualquer sinal de rebeldia.A grande maioria dos negros se situava entre a oposição aberta à escravidão e a submissão conformada.Pouco a pouco, os africanos passavam a ter conhecidas as características de seu comportamento frente à escravidão. Os escravistas puderam formar conceitos quanto à natureza de cada tipo; muitos jamais aceitaram a dominação.Quando esgotavam as possibilidades de barganhas e concessões partia-se para a ruptura ? o confronto direto.As fugas eram rotineiras e havia aqueles que se prestavam ao papel de tentar recapturá-los, de preferência com vida, para retornarem ao cativeiro; se fosse preciso, mortos - para servirem como exemplo e desencorajar novas tentativas. O aprisionamento dos fugitivos competia aos capitães-do-mato, que contavam com auxiliares e a colaboração oficial da Justiça colonial.O ambiente das senzalas era o que restava aos negros para tentar a preservação das suas dimensões humanas, até que surgisse a oportunidade propícia à fuga. Sob o disfarce de cantigas e danças sobreviviam suas crenças e ritos, como a mais inocente forma de diversão.Gravuras e desenhos feitos pelos primeiros estudiosos que visitaram as terras americanas, registraram cenas da vida na sociedade colonial, onde se encontra impressa a força das manifestações da cultura africana.Ao som dos atabaques permanecia vivo o culto aos orixás e outras danças das quais se perdeu a memória, mas de onde nasceria o jogo da Capoeira: os movimentos de corpo dos africanos - gestos ancestrais preservados em suas danças - serviram com base para a elaboração de uma luta coletiva; afinal, os meneios de corpo, o jeito solto e ágil, servem perfeitamente tanto ao fascínio da dança quanto à magia da luta.Sabe-se que os negros eram insuperáveis na luta corpo a corpo, também numa conseqüência direta do vigor físico comprovado no estafante trabalho muscular que exigia alta carga de força. Habituados aos rigores da vida na África, as tarefas que antes se constituíam em atividade necessária na terra natal eram instituídas como trabalho forçado no Brasil. A aparente submissão era o modo dos cativos de costumes e culturas diferentes ganharem o tempo necessário para criar - ou simplesmente aproveitar - a oportunidade de fuga, dificultada pelo fato de sequer possuírem uma língua comum.A expressão corporal nos ensina há milênios uma linguagem que permite a comunicação sem palavras, estabelecendo a fraternidade nos gestos comuns: a dança revela os sentimentos e evidencia idéias, na plástica e harmonia dos movimentos. Pois disto se serviram os negros: protestando e se insurgindo, individual ou coletivamente, expressando a linguagem do corpo na revolta, na insubordinação às regras do jogo do sistema colonial: formando quilombos, promovendo fugas, e assassinando senhores; mas sua luta passou especialmente pela afirmação de sua cultura.As fugas dos escravos se tornaram cada vez mais organizadas. É fácil imaginar o negro desarmado, porém exímio no manejo do corpo, a desfechar o golpe certeiro, no momento oportuno - para em seguida ganhar a liberdade. Livre, o terreno de pouco mato era adequado à manutenção da liberdade, permitindo o enfrentamento dos perseguidores. A vegetação rasteira, denominada em língua tupy caá-puera iria dar nome aos guerreiros e à sua luta: Capoeira.A Capoeira é um bom exemplo de como os negros agiam com malícia dissimulando sua verdadeira intenção ao enfrentar os senhores e seus agentes. Para disfarçá-la, a ginga ? que fazia dela ao mesmo tempo uma luta e uma dança! Cada negro recapturado trazia em si a certeza da liberdade. Tudo apenas uma questão de tentar sempre. Na próxima tentativa... E as fugas se sucediam.Nas matas, os negros que conquistavam a liberdade formavam quilombos, onde viviam segundo regras próprias. Estas comunidades foram numerosas desde meados do século XVI, havendo-as em todas as capitanias e principalmente na região de Pernambuco e Alagoas. Aí houve uma verdadeira nação, conhecida como Palmares, que enfrentou bravamente os escravocratas.A destruição de Palmares aconteceu depois de cerca de sessenta anos de luta, por forças comandadas pelo paulista Domingos Jorge Velho e o pernambucano Bernardo Vieira de Melo. Mas este fato não significou derrota total. Cresceu daí a consciência da própria força no povo negro e a certeza de que poderia encontrar a liberdade, nas terras para onde veio trazido como escravo.Palmares ficou como ponto de referência de uma gente espalhada por todas as partes deste país, simbolizando uma luta secular de libertação de um povo que se identifica não somente pela pigmentação da pele, mas pela mesma herança cultural. A luta do povo de Palmares está viva como ponto de partida para chegarmos a uma sociedade livre.Desde a época da campanha dos escravistas contra o Quilombo de Palmares ficou o registro da luta heróica em defesa da autonomia cultural.A existência da Capoeira resulta da longa luta por reconhecimento cultural travada ao longo dos quatro séculos de cativeiro. E o termo capoeira, nome dos guerreiros das capoeiras e de sua estranha forma de luta, que tornava homens desarmados capazes de enfrentar e vencer vários adversários, corporifica ainda hoje nos jovens praticantes do século XXI. Assim é que a luta dos africanos e seus descendentes afro-brasileiros subsiste no jogo da Capoeira.A respeito das origens remotas da Capoeira é interessante transcrever Albano de Neves e Souza, que escreveu de Luanda, Angola, a Luis da Câmara Cascudo, afirmando: “Entre os Mucope do sul de Angola, há uma dança da zebra N’Golo, que ocorre durante a Efundula, festa da puberdade das raparigas, quando essas deixam de ser muficuemas, meninas, e passam à condição de mulheres, aptas ao casamento e à procriação. O rapaz vencedor do N’Golo tem o direito de escolher esposa entre as novas iniciadas e sem pagar o dote esponsalício. O N’Golo é a Capoeira.” Em seguida, Albano de Neves e Souza passa a expor sua teoria a respeito da evolução do N’Golo no Brasil: “Os escravos das tribos do sul que foram através do entreposto de Benguela levaram a tradição de luta de pés. Com o tempo, o que era em princípio uma tradição tribal foi-se transformando numa arma de ataque e defesa que os ajudou a subsistir e a impor-se num meio hostil”. Neves de Souza acrescenta algumas informações e conclui pela origem africana da Capoeira: “Os piores bandidos de Benguela em geral são muxilengues, que na cidade usam os passos do N’Golo como arma. (...) Outra das razões que me levam a atribuir a origem da Capoeira ao N’Golo é que no Brasil é costume os malandros tocarem um instrumento aí chamado de Berimbau e que nós chamamos hungu ou m’bolumbumba, conforme os lugares, e que é tipicamente pastoril, instrumento esse que segue os povos pastoris até a Swazilândia, na costa oriental da África.” Estes relatos ilustram hipóteses quanto às origens da Capoeira. Note-se que essas danças são conhecidas no Brasil apenas através da literatura sobre o assunto. A história da Capoeira aguarda pesquisa minuciosa em terras africanas com o objetivo de constatar nessas danças os possíveis elementos formadores da Capoeira. Danças com características de luta já foram identificadas em Cuba, Martinica, na Venezuela e em outras localidades das Américas, mas discute-se se teriam origens comuns à Capoeira. Concretamente, temos a luta dos negros, elaborada a partir de gestos e movimentos próprios dos africanos, cuja fonte primária é a terra de onde vieram os guerreiros : a África. De lá veio o elemento matriz no processo que culminou no jogo da Capoeira - o negro! - e os movimentos corporais da capoeira atual são fragmentos atualizados da memória negra afro-brasileira. Recriando a cultura africana nessa terra, os negros não ficaram passivos diante de sua nova condição. Desterrados e escravizados, combateram o poder escravista com uma rica produção cultural, conquistando espaços e recriando sua autonomia e identidade étnica em solo brasileiro. E acabou brasileira esse jogo-luta, como testemunhou Charles Ribeyrolles, um francês que aproveitou o tempo vivido em nossa terra - exilado por Napoleão III - para retratar os costumes da nação que se formava: “No sábado à noite, finda a última tarefa da semana, e nos dias santificados, que trazem folga e descanso, concedem-se aos escravos uma ou duas horas para a dança. Reúnem-se no terreiro, chamam-se, agrupam-se, incitam-se e a festa principia. Aqui é a capoeira, espécie de dança pírrica, de evoluções atrevidas e combativas, ao som do tambor do congo.”
texto de Camille Adorno
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