mudanças na capoeira e a reação/não-reação de muitos
- canal capoeira entretenimento
- 8 de jun. de 2020
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Na passagem dos anos oitenta para o anos da década de noventa, acredito eu, a capoeira experimentou um nova onda de dinâmicas de mudanças, uma onda de novos experimentos, positivados em novas formas de se jogar e ritualizar essa prática, caracterizando uma forma de resistência às realizações passadas, que já demonstraram sinais de ruptura, de rachaduras, fissuras herdadas e constituídas a partir das muitas tensões que se estabeleceram, estas últimas, também, perfeitamente justificadas e legítimas, como é próprio de qualquer atividade, ação, prática, construção e movimento humano.

Essa onda gera espécies de envolvimentos de pessoas e grupos de pessoas comprometidas na proposta e argumentação que sustente e legitime suas práticas efetivamente comprometidas com a transformação da realidade e na quebra de pensamentos e atividades desgastados e, no contexto novo que se configurava, exclusivamente especulativos, sem sustentação de qualquer espécie, tendo como prova disso a forma de jogar de muitos capoeiristas que, em nome de doutrinas ditas tradicionais e sagradas, supostamente imutáveis, se tornou obsoleta, sendo estes facilmente envolvidos e dominados no jogo, levando-os a, incrédulos, perceber o quão distantes suas práticas haviam ficado.
“ […] não havia como evitar que tais ideias fossem avenidas teóricas através das quais trafegaríamos na capoeira.”
Neste momento histórico, muitos de nós, eu inclusive, estávamos na universidade, envoltos em discussões sobre teorias e formas de pensamentos e princípios críticos que nos levava a tomar conhecimento de nossa própria identidade, de que nosso corpo e nossas ideias, bem como as consequências advindas desse conhecimento, nos pertenciam, que os cuidados e proteções de que erámos objetos já não se faziam necessários, afinal de contas assumimos o protagonismo de nossas vidas, ou seja, não admitiríamos que outros e outras pensassem e tomassem decisões por nós, aspecto marcante, até então, na capoeira, em que mestres e professores eram quase deuses e decidiam e interferiam efetivamente em nossas vidas, inclusive para além do universo da capoeira. Assim sendo, não havia como evitar que tais ideias fossem avenidas teóricas através das quais trafegaríamos na capoeira e encaminharíamos nossa prática.

Essa onda cresceu e disseminou muitas mudanças, umas consideradas adequadas, outras absurdamente fora de propósito e, outras ainda, pouco entendidas. No entanto, as mudanças se fizeram presentes e foram sentidas, assimiladas ou não, porém irreversíveis. Claro, reafirmo, longe de serem consenso. Porém, quando você olhava para o lado, ao seu redor, para identificar a reação dos outros, para entender quem e como fora atingido, provocado, inquietado, incomodado, atingido pela onda de dinâmicas de mudanças, tal como era de se esperar, notadamente por se tratar de pessoas envolvidas, sujeitos de processo, protagonistas da capoeira, pouco ou quase nada identificava neste sentido.
Na verdade, independente de posicionamentos frente a nova onda, era aguardado reações de desespero, de perplexidade, de alegria, de satisfação, de aceitação, de negação, dentre outros, ou seja, deveria acontecer algum tipo de perturbação. Mas, ao contrário, percebemos que poucos de nossos camaradas haviam se perturbado, se incomodado, se indignado. Havia, isso sim, muitos que se mostravam distantes, pouco afeitos a percepção acerca de qualquer tipo de movimento de mudança. Não significava que se sentiam contrários, mas, pior ainda, distantes, sem percepção nenhuma acerca disso. E era, na verdade, uma nova onda de dinâmicas de mudanças significativas e importantes.
“[…] de criarmos, de inventarmos pontes de ligação, avenidas que transcorressem entre o antigo e o novo, criarmos dialetos que possibilitassem diálogos.”
Nossa concepção era a de que algo estava em mudança e, vindo de onde nós viemos, a necessidade de sermos mobilizados era urgente, a necessidade de falar sobre formas novas não admitia nenhuma possibilidade de silêncio ou imobilização. Então, pensamos, nosso esforço, agora, é seguir fazendo o que acreditamos ser o certo, pois, abrindo um parêntese, na capoeira, uma cultura forjada em contextos de lutas, de embates, de resistências e encharcada de subjetividades, onde conquistas são difíceis de se estabelecer, é bastante complicado se falar em mudanças, o que não inviabiliza a legitimidade dos movimentos nesse sentido, bastando lembrarmos do movimento comandado por Mestre Bimba em torno da institucionalização de sua Luta Regional Baiana, a Capoeira Regional como a denominamos hoje. Bimba carregou estigmas fortes contrários ao movimento da Regional, mas seguiu em frente, demonstrou a força de desse movimento e institucionalizou uma escola de capoeira, atualmente tomada como uma das tradicionais e, a partir da qual, várias novas escolas foram se constituindo; a outra é a escola de Capoeira Angola de Mestre Pastinha.
Nossa luta passou a ser, então, a favor de que não perdêssemos as oportunidades descortinadas por essa nova onda de dinâmicas de movimentos de mudanças na capoeira, no intuito de que ideias construídas por gerações inteiras não fossem esquecidas ou silenciadas, de criarmos, de inventarmos pontes de ligação, avenidas que transcorressem entre o antigo e o novo, criarmos dialetos que possibilitassem diálogos entre os que propunham mudanças e os que se sentissem distantes e excluídos dos movimentos emergentes. Por exemplo, despertar para a leitura e o debate em torno dos novos sujeitos e suas pautas de reinvindicações que adentravam o universo da capoeira; apreender ideias, dantes concebidas como profanas, que se firmavam como urgentes e necessárias contra o imobilismo e o atraso cultural; articular as demandas jovens que se aproximavam da capoeira com os fundamentos dessa arte, dentre outros aspectos.
Esse movimento nascente dentro da nova onda de dinâmicas de mudanças, não poderia ser diferente, nos levou a nos sentirmos desconectados no universo da capoeira, pois nos colocava na posição de alienígenas odiados, pois dessacralizávamos o que era sagrado, quando, por ignorância ou perversidade, os acusadores haviam se esquecido de que o que estabeleciam como sagrado era, nada mais, do que institucionalizações estabelecidas a partir de ondas dinâmicas de mudanças anteriores. O irônico de tudo foi que, a nova onda de dinâmicas de mudança, mantinha muitos aspectos considerados fundamentais, tradicionais mesmos, aliás, nem mesmo havia a preocupação em alterar tais fundamentos, tendo seu âmago no jogar, na ritualização em torno do jogo e nos experimentos sobre novas formas de se jogar.
Teríamos que fazer com que percebessem que a capoeira sempre teve formas diferentes de se expressar, em um determinado lugar com o uso de instrumentos e palmas, em outro, somente ao som de palmas; acolá somente brincavam, com firulas, saltos e gracejos, enquanto mais além lutavam para valer, se batia forte, causando traumas e lesões aos adversários; haviam jogos rasteiros, com muita malícia, porém perigosos aos descuidados; outros somente em cima rápidos e agressivos, com aplicação de golpes traumáticos e quedas; ao longe, tinha-se notícias de jogos que envolviam tudo isso, com movimentos, rasteiros, explosivos e floreios; e assim são quase inesgotáveis as possibilidades de manifestação da capoeira, as formas de se ritualizar e jogar esta arte.
Neste sentido, deveríamos fazer com que percebessem que não se estava limitando suas identidades e escolhas, que deveriam se identificar e não permitirem que barreiras com as demais pessoas fossem criadas, não se criar rótulos, mas aproveitarem da abertura proporcionada. Isso foi, de certa forma, feito. Acreditamos ter sido uma contribuição para o debate, trazer novas pautas que contribuíam com a onda nova de dinâmicas de mudanças e que seguimos aprofundando até os dias presentes.
“[…] cientes de que contribuímos para criação de algo novo e viável, assinamos nossos nomes nas agendas da capoeira, trafegamos livremente em suas avenidas e falamos com fluência seus diversos dialetos.”
Afinal de contas, nós estávamos incluídos no grupo daqueles que eram invisibilizados, considerados não legítimos, sem tradição, esquecidos e, portanto, sem fala, silenciados, visto estarmos situados, no entendimento de alguns, na periferia dos grandes centros de expressão da capoeira, do qual, salvos Bahia e Pernambuco, o nordeste era quase todo situado, ou seja, uma pessoa piauiense, caso não fosse filiado a algum grande mestre pertencente aos grandes centros de expressão da capoeira, não podia ser considerado um capoeirista, não tinha voz e nem vez, não possuía representação positiva, era um não-capoeirista.
A nova onda de dinâmicas de mudanças trazia à tona a possibilidade de se superar esse quadro e nós estávamos no centro, pois tínhamos a possibilidade de, ancorados em epistemologias outras, nos recolocarmos, assumirmos o protagonismo de nossa história na capoeira, de contrapor todas as formas de preconceitos que impactaram e moldaram nossas vidas, nos tornando alienados e impossibilitando nossa participação.
Mesmo nos criticando e tentando nos desqualificar seguimos a onda nova, demonstramos nossa legitimidade e trouxemos contribuições relevantes e significativas para a capoeira e, mesmo falando a partir da capoeira teresinense, nos referimos à capoeira de forma geral, em sua totalidade, ao escrevermos em seus anais nosso nome e legitimarmos nossas escolhas, valores e práticas, as quais se assentaram no fortalecimento de nossas identidades, a ocupação de territórios próprios, o uso da palavra falada e escrita pontuando e demarcando espaços, além do reconhecimento de nossos nomes enquanto protagonistas, sujeitos capoeiristas, lideranças fortes e formadores de gerações de capoeiristas.
Assim sendo, cientes de que contribuímos para criação de algo novo e viável, assinamos nossos nomes nas agendas da capoeira, trafegamos livremente em suas avenidas e falamos com fluência seus diversos dialetos. Isso explica, aos que insistem em se ocupar a dar sentidos às escolhas pessoais dos outros, o porquê de optarmos, em vários momentos, pela forma camaleônica, o mudar sempre, de acordo com cada situação e em cada contexto diferente; o que nos leva a sempre redirecionar, transfigurar, dinamizar, provocar, trazer a inquietude e instigar a alomorfia; por isso, não somos vistos com bons olhos, apesar de sermos seguidos em quase todos os movimentos que propomos, muito embora, apenas no estágio de arremedo; é por isso, ainda, que não nos conformamos facilmente em nenhum grande grupo, tampouco nos sujeitamos a imposições descabidas de alônimos grandes mestres; é por isso, finalmente aos propósitos desse escrito, que criamos nossa própria escola, ensinamos e formamos nossos próprios discípulos e nos propomos a seguir fomentando a liberdade, a autonomia e o livre expressar dos Mestres, dos novos Mestres e de qualquer capoeirista que, legitimamente reconhecido nesse universo, se sinta desafiado a mudar, provocado a seguir suas próprias trilhas e veredas, pois a simples dinâmica que cotidianamente lhe mantém em movimento no universo da capoeira, por si só justifica e fundamenta seu agir, tendo como base fundacional os cenários de luta por liberdade, de resistência contra opressão e de afirmação identitária em que a capoeira foi forjada e se fortaleceu enquanto código humano de resistência, Pedagogia profana e da afirmação.
“[…] a possibilidade de se criar novas narrativas […] que levem em conta todos os tipos de igualdades e, acima de tudo, o direito de termos o poder sobre nós próprios.”
Concluímos, nos posicionando a favor das ondas dinâmicas de mudanças na capoeira, ressaltando o papel que têm de fazer ver que, enquanto capoeiristas, mesmo lutando e defendendo muitos objetivos comuns, somos diferentes, temos objetivos diversos e nos movimentamos de formas diferentes, mas fazemos questão de participar e temos certeza que podemos, juntos, articular os diferentes pensamentos e concepções, cada qual centrado nas experiências de suas comunidades particulares, tendo como exemplo a ideia e concretização da primeira Escola de Capoeira de Teresina, a Escola de Capoeira Mestre Bobby, fruto direto de dinâmicas gestadas na nova onda de mudanças ressaltada aqui e que muito contribuiu para a abertura, o entendimento e o diálogo entre diferentes formas de pensamentos, convergentes e divergentes, mas, acima de tudo, dignos, legítimos e merecedores de respeito.
Essas são as ideias que plantamos, seguimos regando e colheremos os frutos, dentre os quais a possibilidade de se criar novas narrativas que partam do entendimento, que levem em conta todos os tipos de igualdades e, acima de tudo, o direito de termos o poder sobre nós próprios, de sermos livres protagonistas de nossas próprias vidas, ai inclusa a capoeira.
Prof. Dr. Robson Carlos da Silva (Mestre Bobby)
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