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Sobre ser mestre de Capoeira

ENSAIO SOBRE FUNDAMENTOS E LEGITIMIDADE DO SER MESTRE NA CAPOEIRA




“[…] Toda tradição tem uma história, um princípio e uma intenção”

Notas introdutórias


A questão da legitimidade de autoridade na Capoeira passa por diversos aspectos que não podem ser relegados ou tratados como de menor importância. Primeiramente, é fundamental destacar que a Capoeira é uma cultura do povo, iniciada ou criada ou inventada pelo povo africano escravizado no Brasil, povo que, enquanto etnia traficada como mercadoria (AKOTIRENE, 2019), insurge-se e utiliza-se de sua riqueza cultural para elaborar essa luta de defesa e resistência contra a violência e os maus tratos infringidos pelos senhores brancos e que de acordo com Caldas (2018, p. 23)


As antigas formas de controle dessa população, o controle ideológico exercido pelos agentes eclesiais e o castigo físico ministrado pelos senhores e seus subordinados se tornaram insuficientes para manter o comportamento dos escravos dentro de padrões aceitáveis, segundo os valores da época. 


É nesse cenário que a Capoeira, enquanto estratégia de rebeldia, luta e resistência se configura e que, embora poucos se arrisquem a dizer, notadamente parcela significativa de pensadores e intelectuais que aprofundam questões atinentes à diáspora africana no Brasil, se transforma na principal arma de defesa e sobrevivência dos escravizados, tomando conta das ruas e estabelecendo complexas instituições negregadas (SOARES, 1999).


Em seguida, conforme aprofundamos em escritos de pesquisas anteriores (SILVA, 2016), já estabelecida e reconhecida como estratégia de combate, verdadeiro código de resistência, se firma como uma Pedagogia Rebelde, um código humano e social de resistência do povo, dado que não mais se restringe aos escravizados, mas se estende ao povo, todos aqueles que povoam as ruas, praças, largos, becos e outros espaços públicos dos centros urbanos e rurais do Brasil, por volta dos anos finais do século XVIII, se estendendo por parte do século XIX, quando se constitui em cultura nacional, se não totalmente aceita, porém, inegavelmente, presente de forma significativa em nossa cultura brasileira.


A ideia que buscamos aprofundar acerca da Capoeira enquanto uma Pedagogia Rebelde, código social de resistência, se aproxima do que Graciani (2014) caracteriza como uma Pedagogia Social, um corpo de conhecimento transversal e aberto às necessidades populares, que visa enraizar-se na cultura dos povos com o propósito de construir novas possibilidades, resguardando aspectos importantes do passado, porém reinventando-o.


Logo, quando se fortalece enquanto escola, enquanto prática cultural difundida por todo o país, bem como significativa parcela de países pelo mundo, surgem as tradições, alguns diriam afloram, passam a ser conhecidas, visto que sempre existiram. 


Não podemos negar, no entanto, que muito do que se convenciona tradição ou fundamento da Capoeira não se sustenta como tal, caracterizando-se como tradições e fundamentos criados por mestres e seguidos por seus discípulos em suas respectivas escolas e grupos. Ancorados nas ideias de Hobsbawm e Ranger (1997), em texto clássico sobre a invenção das tradições, apreendemos que todas as tradições são inventadas, passando por um processo de criação, se transformando em costume antigo que, somente depois de se consolidar no imaginário popular, é tomado como tradição. Assim sendo, o caráter humano, histórico, social, cultural e de relações de poder de uma tradição é inegável, ou seja, toda tradição tem uma história, um princípio, um propósito e atende a determinadas relações de poder. 


Trazendo o debate para o objeto de nossa reflexão, podemos afirmar que, dentre diversos aspectos que compõem o âmago do conjunto de práticas, valores, comportamentos, atitudes, ritos e rituais chamadas tradições, são o que garantem, de acordo com o contexto de cada escola e grupo específicos, a legitimidade dentro do universo da Capoeira, pois, embora haja algumas divergências acerca de determinadas opções e atitudes entre os mestres e praticantes, na maior parte dos casos o reconhecimento de determinada tradição de uma escola de Capoeira é respeitado e compartilhado entre todos, mesmo havendo rixas e incompatibilidades outras, mas a história da escola, a vivência de seu mestre e discípulos/as no universo dessa arte, sua inserção nesse universo, lhes concedem legitimidade e autoridade, ou seja, a pessoa passa a ser reconhecida enquanto mestre e a ter sua própria escola e tradições particulares respeitadas.

A partir disso, devemos ficar atentos a outro aspecto da legitimidade destacada acima, por exemplo, o título de mestre obtido por algum capoeirista de determinada escola ou grupo, concedido por seu mestre. Se atentarmos com maior apuro identificaremos que nenhum outro título ou graduação, mesmo de contramestre ou outro grau equivalente nas hierarquias dos grupos, causa tanta atenção quanto o título de mestre.


Este é um ponto, antes de avançarmos na legitimidade do mestre, a ser considerado e refletido, visto que, quando relegamos os demais graus, anteriores ao de mestre, a segundo plano, não voltando olhar crítico aos mesmos, tampouco o mesmo nível de cobrança, estamos, assim, aceitando uma ruptura, uma quebra, no desenvolvimento hierárquico dos praticantes, em seus processos de formação, visto ser esta jornada que garante a legitimidade de mestre, ou seja, não havendo cuidado e rigor na progressão nos graus anteriores a mestre é bastante provável que a formação desse mestre, nesse caso, ficará comprometida.


Inclusive, nos tempos atuais, assistimos a muitas situações embaraçosas devido a esse fenômeno, notadamente, quando alguns títulos de mestres são concedidos a praticantes sobre os quais quase ninguém conhece sua jornada na Capoeira, sua história de vida e o lugar da Capoeira nessa história privada. 


É sobre este aspecto que desejamos despertar a atenção e a curiosidade, a pesquisa e o aprofundamento, aliados ao diálogo compartilhado, que somente a inserção neste universo pode garantir. O que queremos dizer é que faz-se necessário que os processos de formação do capoeirista sejam acompanhados e conhecidos em todas as etapas, em todos os graus, que se produza um dossiê ou outra forma de registro, que se saiba e se tenha plena ciência dos critérios avaliativos, dos processos estabelecidos e, principalmente, que a história da pessoa que se qualifica e progride de grau seja conhecida, que seja citado como um sujeito, um protagonista, aqui considerando homens e mulheres capoeiristas. Que sua presença seja percebida e suas contribuições sentidas e identificadas. Ressaltando que a simples presença nas rodas, nos encontros, nos treinos já caracteriza essa inserção, já legitima a história do capoeirista.


É importante reforçar, também, antes que se alegue que pretendemos inventar moda, quando defendemos a produção de um dossiê de registros, que as formas de registros da história e da jornada de um capoeirista já existem a muito tempo, por meio de registros fotográficos, nos álbuns de fotografias, e em vídeos, nas fitas de VHS e, atualmente, em filmadoras de celulares, registros estes transformados em documentos eletrônicos e dispostos em pastas de arquivos onde se mantém salvos para socialização em redes de relacionamentos e plataformas online. Por sua vez, existem também, registros escritos, em diários, agendas cadernos, com narrativas individuais destacando as jornadas pessoais e a de outras pessoas, ressaltando fatos pitorescos e os feitos dos capoeiristas envolvidos.


Inconcebível seria não se fazer esses registros, o que se configuraria em uma forma de descaso, visto que já se transformou em um costume nos eventos de Capoeira, nos encontros, nas rodas e treinos, fazer-se registros dos momentos marcantes e dos participantes presentes.


A Legitimidade do “ser mestre” na Capoeira: reflexões e pistas

“[…] o mestre é formado na vivência e quem lhe atribui reconhecimento, legitimidade e autoridade é a comunidade”

Dito isso, voltemos à questão da legitimidade do mestre de Capoeira. A reflexão que trago à tona trata de um aspecto que sempre nos incomodou e segue incomodando a muitas pessoas inseridas nessa prática, e diz respeito ao entendimento de qual seria, afinal, a extensão e o alcance da autoridade do/a mestre/a? Até onde suas determinações são respeitadas? Por que, mesmo se tornando mestre/a, este/a, em não raros exemplos, ainda fica submetido/a a jugos e decisões alheias, inclusive, sem capacidade de fazer valer a própria autoridade livre dessas amarras? Sendo mestre/a, pode-se pensar em criar sua própria escola e formar e comandar seus/as discípulos/as? Qual o fundamento em se formar um/a mestre/a e, mesmo assim, esse/a ter que ficar aguardando certo período estipulado por quem lhe formou para ser reconhecido/a ou chamado/a de mestre/a, mesmo não se identificando nenhum estatuto que determine isso na escola da qual faz parte? Qual a diferença, caso exista, entre formar e conceder o grau um/a mestre/a? Dentre muitas outras questões que veem sendo levantadas constantemente no universo desta cultura, formando um corpus que se alarga e, ao mesmo tempo, se banaliza com o advento das redes de relacionamentos da web.


Aliás, abrindo um parêntese, sobre este último aspecto é cada vez mais assustador a forma como as pessoas se agridem e causam transtornos aos outros em grupos online, chegando a ser covarde e vil a forma como se trata de problemas os mais diversos, sejam importantes ou banais, coletivos ou pessoais, públicos ou privados. Não podemos ser contrários ao uso da internet, suas benesses e os ganhos que trouxe, principalmente comunicacionais e educacionais, conforme abordamos e pusemos em prática em pesquisa anterior (AVELINO; SOUSA; SILVA, 2015), porém o que se percebe atualmente, pleno ano de 2020, é a total falta de senso, de respeito e compreensão, marcados por xingamentos, desconstruções do trabalho e autoridade dos outros, propagação de mentiras e leviandades, afirmações sem fundamentos e apoiadas em fofocas e alegações infundadas Claro, sem jamais generalizar e afirmar que se tratam de comportamentos predominantes e absolutos.


Pois bem, a legitimidade do mestre acaba passando por um processo de desqualificação, fruto de intenções, controle e poderio absoluto sobre o outro, o que se identifica, principalmente, nas falas e práticas de mestres tidos e reconhecidos como sumidades, excelências, os conhecidos grandes mestres da Capoeira, aqueles que muitos intitulam de os donos, no caso “pseudo dono”, e que gostam de afirmar que um verdadeiro mestre é formado na vivência e quem lhe atribui reconhecimento, legitimidade e autoridade é a comunidade.


Porém, dois pontos não ficam claros a partir dessa concepção: quando se pode realmente passar a ser chamado mestre por determinada comunidade, bem como, em qual sentido é possível identificar que uma comunidade tal, seja ela qual for, está apta a conceder essa legitimidade. Deixemos para os próprios autores dessa teoria trazer elementos rigorosos que nos convença dessa afirmação/determinação, pois desconfiamos tratar-se de falácia do que argumento solidamente fundamentado.


Não podemos nos esquecer, claro, que muitas das pessoas que defendem esse argumento, o fazem somente se referindo aos outros mestres, formados pelas outras escolas, jamais àqueles que eles próprios formam, visto que, a esses últimos, por serem seus discípulos, basta o reconhecimento dado por ele, cabendo aos demais, inclusive à comunidade apregoada, a obrigatoriedade de reconhecer e atestar a excelência de sua formação, muito embora, alguns dos mestres que formam somente sejam conhecidos no contexto de seus grupos; treinam com seus pares, frequentam eventos de seu mestre e de seus colegas de grupo, somente vão em rodas promovidas por componentes de sua escola, ou seja, é um excelente capoeirista “do seu grupo”, nem sequer interage com outros estilos de jogo, com outras escolas e capoeiristas cuja forma de jogar se diferencia da sua.


Outra face desse fenômeno, talvez a mais imprudente, se positiva quando um mestre, assentado em sua arrogância e seu ego vigoroso, vem a público, usando uma expressão comum na capoeira, “falar mal” dos outros, como se sua opinião fosse legitimada, aceita e plenamente respeitada por todas as pessoas, todos os capoeiristas, criando um mal estar e provocando a ira de muitos que, sem perceberem que estão, na verdade, sendo usados, acabam propagando as inverdades desse mestre, caindo em suas armadilhas.


Aqui, acima de tudo, já se identifica atitudes totalmente incoerentes com a imagem do mestre, seja em qual contexto, tais como a humildade, a postura ética, a fineza e a dignidade, atributos estes facilmente identificados nos/as mestres/as de qualquer arte. Por outro lado, cabe a pergunta, se cada mestre é líder de sua escola e se ampara em fundamentos e tradições particulares e subjetivas, que dizem respeito a seus grupos, cujas decisões somente afetam aos componentes de suas escolas, com que autoridade um mestre se predisporia a gastar tempo e energia para “falar mal” dos demais? Percebam que se trata de “falar mal”, ou seja, numa análise livre, de juízo de valor opinativo e não de uma crítica, esta sim perfeitamente cabível, pois se trata de análise aprofundada e de conjunto, trazendo obrigatoriamente contribuições relevantes para que os criticados possam superar pontos frágeis e elevarem seus pontos positivos, além de assimilarem novos e exitosos aprendizados.


Assim sendo, a leviandade do “falar mal” deve ser entendida como banal, sem sentido, sem legitimidade e totalmente descabível, devendo seu autor, mesmo se colocando como sumidade entre os mestres, se recolher ao seu grupo, a sua escola, tratando de seus problemas e, quem sabe, se inserindo ética e legitimamente no universo da Capoeira, dialogando, aprendendo e ensinando, contribuindo para o crescimento da arte.


Trazemos à cena para reflexão outro ponto merecedor de análise e aprofundamento, que é o costume, também não raro, de alguns mestres e componentes de seus grupos em desqualificarem a formatura de mestres de outras escolas, geralmente, das que não mantém relacionamentos, tampouco conhecem o trabalho que julgam, pior ainda, divergem por alguma desavença ou atrito no passado e, por carregarem mágoas e ranços, sempre vão tentar desqualificar o trabalho do outro.


Este aspecto é mais característico dos ditos grupos grandes, aqui entendidos aqueles que possuem várias filiais espalhadas pelo Brasil e pelo mundo, que tendem a não admitir como legítimas as ações dos demais grupos, fazendo circular em suas plataformas de relacionamentos internos, depois socializados pela web, discursos de ódio e de superioridade, desrespeitando o que os demais, alvos de seus ódios, conseguiram construir com muito trabalho e dedicação, algumas vezes tornando-se referência de qualidade no mundo da Capoeira e além deste universo, com ações exitosas que envolvem pessoas e comunidades inteiras.


Quem perde com isso? Claro, a Capoeira, ao se permitir que práticas iguais a essas ainda persistam em seu meio, quando muitos dão ouvidos a falsos discursos e atitudes vis, ao invés de concentrarem esforços coletivos para o desenvolvimento excelente desta arte, rica, multidimensional, potencialmente engrandecedora em muitos aspectos e, principalmente, encharcada de brasilidade e que favorece, por meio de sua prática, em um mundo em que pouco temos para nos orgulhar, olhares do mundo todo para nossa cultura, nossos costumes, nossa língua, nosso jeito e nossa gente.


Um último aspecto a ressaltar, no contexto do texto em tela, diz respeito à acentuada insolência de alguns mestres da Capoeira quando, muito embora se apresentem como guardiões sagrados das tradições, fazem mudanças arbitrárias, aleatórias, totalmente sem sentido e, ao final das contas, fazem de tudo para que suas determinações, aceitas e exaltadas em sua escola, passem a ser aceitas como verdade, tradição ou fundamento universais, não importando o quão sejam ridículas, ou mesmo não interessem aos demais grupos, por motivos diversos, sendo o principal a coerência que muitos mantém em suas escolhas e decisões.

“[…] o ritmo quente do berimbau e a magia melódica das cantigas, não somente “arrepia”, mas renova a alma e fortalece as energias gestuais […]”

Destacamos, neste sentido, a prática de um mestre que, em um único movimento em busca de legitimidade de “mestre supremo da Capoeira”, rebaixou o título de mestre de pessoas que havia formado a muito tempo, criando uma nova graduação abaixo da de mestre, na qual inseriu esses “ex-mestres”; criou mais uma nova graduação, acima da de mestre, na qual se autopromoveu e se reposicionou, se mantendo acima de todos os demais “ex-mestres”; além de convidar uma banca de velhos mestres da Capoeira para, devidamente fardados de terno e calça brancos, assistirem sua autopromoção, talvez como forma de garantir legitimidade ao processo, muito embora, em momento algum tenha deixado claro a função e atributos da banca de mestres convidados.

Em nosso entendimento, isso não caracteriza legitimidade, pois legitimidade não é forjada, tampouco imposta brutamente e sem consenso. A legitimidade do ser mestre está na autoridade adquirida, no respeito conquistado, forjado que foi na prática diária e cotidiana, no reconhecimento dos outros, por sua vez, adquirido com respeito, dignidade e, acima de tudo, humildade e postura ética adequada.


Não podemos nos curvar e aceitar calados práticas, como as ressaltadas no corpo desse texto, de mestres que ofendem uma gama inteira de pessoas e grupos e, tempos depois, se apresentam para as mesmas pessoas e grupos como os donos da verdade, os bons samaritanos e sumos conhecedores da Capoeira, inclusive, sem nem ao menos terem o bom senso e o cuidado de retratarem-se das atitudes mesquinhas anteriormente tomadas. Isso não é ter legitimidade, mas ser arrogante, aproveitador e falso.


Pior de tudo é identificar pessoas que se degeneram e aceitam se submeter a tais situações, se acercando desses mestres, ouvindo-os e concedendo créditos a suas asneiras, agravado pelo fato de pagarem caro e nada acrescentarem a seus conhecimentos e práticas ao final do processo de submissão e subalternação a que se permitem. Algumas dessas pessoas, como pudemos constatar, são detentoras de saberes e conhecimentos aprofundados, possuem práticas exemplares e desenvolvem trabalhos com Capoeira de qualidade elevada, com vários/as alunos/as e discípulos/as conhecidos/as no universo da Capoeira. Fica a questão: o que leva as pessoas a submeterem-se, quase que rebaixando-se e deslegitimando suas autoridades, a esses tipos de mestres?


Acreditamos tratar-se de questões que merecem de reflexões futuras e aprofundadas, trazendo à tona novos escritos e proporcionando novas e salutares discussões.


Para finalizar, situamos a forma como obtivemos as informações sobre o tema refletido, sobre comportamentos que descrevemos como arrogantes na intenção instituir mudanças e alterações em tradições já legitimadas na Capoeira e as questões apontadas como pistas. Nos utilizamos das ideias de Favret-Saada (2005), a partir de sua pesquisa com feitiçaria e suas escolhas metodológicas na condução do trabalho etnográfico, quando afirma, que 

Inicialmente, valem algumas reflexões sobre o modo como obtive minhas informações de campo: não pude fazer outra coisa a não ser aceitar deixar-me afetar pela feitiçaria, e adotei um dispositivo metodológico tal que me permitisse elaborar um certo saber posteriormente. […] não era nem observação participante, nem (menos ainda) empatia. (FAVRET-SAADA, 2005, p. 01)

Ser afetado e deixar-se afetar pela Capoeira, por nossa vez, seguindo a afirmação destacada, nos fez perceber a necessidade de uma epistemologia vinda de baixo, da roda de Capoeira, por exemplo, e não imposta pela academia, quando estes tipos de discursos impostos pela academia, travados dentro de um corpo fechado característico de determinada área do conhecimento, não permitem que se construa discursos, ou contradiscursos, provocadores, profanos, abrasadores; epistemologia que melhor sustenta a produção de um conhecimento que, mesmo estigmatizado (do povo, das ruas, das lutas de rua, da Capoeira, dos negadores de toda opressão), produz crítica de resistência assentada nos sentimentos mobilizados pela energia das emoções, ou seja, ser afetado no trabalho de campo, a partir da certeza de ao deixar “afetar-se” pelo seu objeto de investigação, longe de o perverter, facilita sua descrição, compreensão e, consequentemente, sua análise.


Considerações não finalizadas


Ao imergir efetiva e significativamente no universo da Capoeira, vivenciando intimamente cada experiência própria de uma jornada que culmina com o título de mestre, mas que, porém, jamais se esgota, jamais se cansa, pois o ritmo quente do berimbau e a magia melódica das cantigas, não somente “arrepia”, mas renova a alma e fortalece as energias gestuais, sempre registramos as falas, os discursos e as práticas que despertavam a curiosidade e nos “afetavam”, nas conversas espontâneas, nos encontros, nas rodas, nas palestras, nos treinos, enfim em tempos e espaços que se configuravam como peculiares nesse universo. Foram essas falas, discursos e práticas que fundamentaram os escritos que teceram o texto em tela.


Essa prática nos qualifica, assim acreditamos e defendemos, a levantar e trazer à tona as reflexões propostas no texto e que, acreditamos ter deixado claro, contribuem para elaborar ideias, entendimentos e sentidos acerca de como as tradições e fundamentos da Capoeira e a legitimidade do ser mestre nessa arte são construídas e conquistam estatuto de legitimidade, autoridade e reconhecimento.


Concluímos provisoriamente o texto defendendo a ideia de que as tradições e fundamentos da Capoeira são forjadas no fazer legitimado e reconhecido, próprio da autoridade concedida, de cada mestre dessa arte, na dinamicidade de criação e institucionalização popular de suas escolas, pontuando que, sem jamais abrir mão desse posicionamento, ser mestre na Capoeira é trafegar as avenidas postas na jornada pessoal de cada pessoa, entrelaçando-as e integrando-as às jornadas dos outros, daqueles que, iguais a você, se propõem a trilhar esse caminho, que na Capoeira é mágico e fascinante, porém possível a todos/as que se encontram nesse mágico universo.



Referências

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. AVELINO, Ysnaira P. D; SOUSA, Anne Caroline S. C; SILVA, Robson Carlos. A Capoeira como aparelhagem social de visibilidade do negro: identidade e ascensão social. IN: MIRANDA, José da Cruz Bispo; SILVA, Robson Carlos; (Orgs.). Entre o Derreter e o Enferrujar: os desafios da educação e da formação profissional. Fortaleza: EdUECE, 2015. CALDAS, Alan. Valentia e Linhagem: uma história da capoeira. Curitiba: Appris, 2018. FRAVET-SAADA. Ser afetado. Cadernos de Campo, n. 13. Rio de Janeiro, 2005. GRACIANI, Maria Stela Santos. Pedagogia Social. São Paulo: Cortez, 2014. HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. SILVA, Robson Carlos. As Narrativas dos Mestres e uma História Social da Capoeira em Teresina/PI: do pé do berimbau aos espaços escolares. Curitiba: CRV, 2016. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A Negregada Instituição: os capoeiras na corte imperial (1850-1890). Rio de Janeiro: Access, 1999.

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